a travessia

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Na sexta-feira passada, de manhã, esperava o comboio, como habitual. Voltei a ver aquele rapaz que uns posts atrás encontrei a enxotar água para os carris de comboio, num fim de tarde chuvoso. Ele vive na estação de comboio de Tebet, acho eu. Não sei se terá pais. Vejo-o sempre sozinho, ora de manhã, quando parto, ora ao fim da tarde, quando regresso. Ele estava na plataforma de lá, com aquele olhar vazio, com aquelas olheiras gritantes, sem amor sem nada, sem expressão, sem esperança. Lançou-se num repente para os carris e atravessou a linha, vinha para cá. Esticou uma perna sobre a plataforma, atirou com um saquinho de plástico e com uma vassoura de palha, atirou com o resto do seu corpo débil para o alcatrão já tão quente da manhã. Ficou um pouco sentado, absorto, e sorria, recompunha-se do esforço. Eu olhava-o, entre outros, de um banco de madeira, onde estava sentada, esperando, com o livro perdido entre as mãos. O rapaz sorria. Porquê? Finalmente, moveu-se, ajeitou-se na posição de cócoras, pegou na vassoura amiga e no saquinho de plástico, e começou a varrer o nada, o nada de nada, a passagem de desconhecidos, o vento do Expresso que passa sem parar, as formigas nervosas, os minutos, ele varria a nossa espera, ele varria o atraso do comboio, ele varria um quarto vazio, um restaurante prestes a abrir, uma sala de espera, o corredor de um hospital, a cama de um doente, o rio, o esgoto, ele varria a memória, a consciência, as suas certezas, ele varria-nos a todos dali, directos para os carris, ele varria.
Delicadamente, coloquei 2000 rupias no saquinho de plástico, e olhei-o com olhos de mãe. Enquanto ele varria os pesadelos, sem reparar em mim.