era uma vez


Frescos no Grande Palácio Real de Banguecoque.
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Era uma vez um sonho que eu tive. Nesse sonho, o meu cabelo era verde e as minhas mãos de lenho. Eu caminhava por um espaço sem fim. Enquanto caminhava, surpreendia animais simpáticos e alguns deles seguiam-me pelo caminho inventado. Era uma vez três, duas, uma pulga sobre a cabeleira da minha cadela. Eu vi-as bem, porque eram pretas e a minha cadela loira. Um dia, tentei asfixiá-las com um algodão embebido em álcool, mas a minha cadela disse “Não vês que me ficam bem?” e eu senti vergonha e pedi desculpa. Era um vez uma pradaria cheia de quadros, cheia de arte, cheia de coisas impropositadas. Nada estava ali por uma razão, mas apenas porque sim. E quem quisesse olhava, quem não quisesse não olhava. Era uma pradaria-museu, sempre aberta ao público e para a qual as pessoas não precisavam de bilhete de entrada. Nessa pradaria aconteciam eventos fantásticos, improvisados pelos próprios visitantes, que não faziam o que faziam por nenhuma razão em particular, mas apenas porque se sentiam bem. Eram performances nunca vistas, actuações únicas, cambalhotas vertiginais. Era uma vez uma cidade muito grande, onde as ruas nunca eram sós e onde os centros comerciais estavam sempre apinhados. Nesta cidade havia muito barulho por nada e muitos homens das obras. Era uma cidade com canais de água cartonada, com autocarros públicos descapotáveis, com rotundas giratórias, com o trânsito ao contrário. Os habitantes dessa cidade não usavam sapatos e eram de tez escura, fumavam cigarros de gengibre e não comiam, cuspiam para o chão, dormiam em pé, e amavam-se às escondidas. Era uma cidade curiosa, que apetece sempre relembrar – essa cidade tão grande que se via do espaço. Era uma vez um homem e uma mulher parecidos e solitários, que não se conheciam e que nunca se conheceram durante a vida inteira. Era uma vez um gato sem dono na estrada, um gato siamês com um olho azul e outro verde, que vivia num bairro simpático onde as pessoas lhe davam cabeças de peixes. Um dia, o gato foi atropelado por uma mota. Sobreviveu, mas ficou sem uma pata dianteira. Então, as crianças brincavam com ele e um dia cortaram-lhe a cauda. Toda a gente do bairro gostava muito do gato e riam-se muito com ele. Um dia, um miúdo quis saber como seria se ele não tivesse a outra pata da frente, então amputou-a. O gato era muito feliz porque toda a gente lhe dava comida e atenção. "Olha agora, o gato!, anda como gente com as suas patas traseiras! Que giro!" Era uma vez uma senhora muito velha que morava num lar e passava o dia a resmungar. Um dia, ela morreu e houve um funeral. No funeral havia muita coisa. Muitos homens das obras, um gato vertical, três pulgas, acrobatas anónimos, um homem e uma mulher que não se conheciam, quadros, eu e a minha cadela. O funeral foi numa pradaria linda, a perder de vista, e ela foi enterrada entre um Affandi e um Bacon. Esta pradaria ficava nos subúrbios da maior cidade que alguma vez apareceu descrita numa história.