a casa do canal

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No início, perdia-me por Jacarta. Fazia o impossível – caminhava a pé pelas largas e longas avenidas: tropeçava nos buracos dos passeios, tossia os vapores das motas, olhava o mapa na esperança de estar perto do lugar que me tinha proposto como meta para esse dia – um parque, um centro comercial, um museu, uma igreja – e continuava por ali fora, para pasmo dos locais com que me cruzava. Já me deixei disso há algum tempo. É muito cansativo, traz-me novos pontos negros à pele e inquieta-me. Ora, eu caminho para relaxar, não para me enervar. Aconteceu-me explorar todas as linhas do autocarro Transjakarta. Um autocarro sofisticado, com ar condicionado e a sua via particular na estrada, o que o impede de ficar encalacrado no tráfego.



Ancol, Gambir, Blok M, Ragunan, Kota – you name it. Cheguei a todo o lado de Transjakarta. Às vezes, esperava horas até conseguir entrar num autocarro, devido ao excesso de gente que se acotovelava na fila desordenada e larga; pela primeira vez senti o que era ser levada pela corrente num mar de gente. Lembro-me de uma noite, na paragem de Tosari, em que me sentindo arrastada por uma turba impaciente e suada e temendo cair no intervalo que há entre a plataforma e a entrada do autocarro gritei “Pelan-pelan! Hati-hati!” (“Devagar! Cuidado!”), fazendo as pessoas abrandar e desatar a rir às gargalhadas. Eu também me ri, fui a rir até casa e ainda agora me rio sozinha quando me lembro. Mas é verdade que nessa altura tinha mais sentido de humor e que agora tenho muito pouco. Agora acontece-me bufar, resmungar entre dentes e sentir que as pessoas não são pessoas mas obstáculos que me impedem de viver como eu quero. Notoriamente, eu ando errada.

Caminhando pelas avenidas veem-se coisas interessantes. Hoje saí de manhã para comprar umas prendas de Natal e, no caminho entre a paragem de Dukuh Atas e o Plaza Indonesia,  passo na parte de cima de um viaduto. Olhando para o lado, reparei num estendal de roupa, entre o canal cheio de lixo e a estrada, naquele cantinho sob a ponte. Debruçando-me um pouco e olhando mais para dentro, pude ver uma casinha improvisada de cimento com telhado de colmo. Senti uma paz enorme olhando as roupas esvoaçando entre os fumos da cidade, com um escasso caniçal de bambus por trás; fazendo um zoom, era mesmo possível esquecer a paisagem urbana e fria circundante, e sentir o calor da pacatez no campo.



Puxei da máquina fotográfica e segundos depois surgiu uma velhota. A dona da casa. Uma senhora que mora debaixo da ponte em Jacarta, entre um canal de água suja e uma estrada de asfalto sujo, mas que mantém o terreno à volta da casa varrido e limpo, a roupa lavada e as canas de bambu bem tratadas. Esta gente que veio das aldeias nos campos de Java e de outras ilhas para a grande metrópole em busca de trabalho, e que vive agora entre os excrementos da grande cidade, percorrendo-lhe o corpo áspero sem sapatos.
Pedem esmola,
vendem comida nos seus carrinhos de mão,



vendem jornais balões livros águas brinquedos gelados amendoins nas estradas ao semáforo encarnado,
são taxistas de mota,



 escolhem o lixo das ruas para o separar e ganhar uns trocos em postos de reciclagem,



desentopem os canais em período de chuvas – quando transbordam e provocam inundações devido à acumulação de lixo –,
ajudam a controlar o tráfego;
as crianças alugam guarda-chuvas gigantes quando cai uma enxurrada de chuva inesperada e correm descalças e semi-nuas pela lava fresca e benéfica da água milagreira que lhes trará umas notas quentes de rupias.
O povo que habita as ruas de Jacarta.