Pramoedya


Sentia-me cansada e apetecia-me dormir. Mas tive uma noite de insónia.
Não sei a que horas adormeci, mas seria tarde, e eu estava inquieta. Como nos tempos da faculdade em que estudava com muita força, especialmente as disciplinas de língua e linguística que sempre me fascinaram, e dormia como que acordada vendo passar em powerpoint gigantes símbolos do alfabeto fonético sobre a minha semi-consciência.
A dada altura lembrei-me dos meus tempos de Lavaur, e como me era sossegada a vida, e perguntei-me porquê. A conclusão foi rápida e clara: não tinha internet em casa, vivia no campo e tinha poucas responsabilidades.
Mas passei a tarde a ler um romance que iniciara durante a insónia. A Rapariga de Java (traduzido para português e publlicado pela Quetzal) do grande autor indonésio Pramoedya Toer, escritor javanês que morreu em 2006, com 81 anos. Esta tinha sido uma prendinha de uma pessoa que é no meu coração, a Cristina, e só ontem encontrei a disposição ideal para o experimentar ler (não haja dúvidas de que as insónias nos deixam num tal estado de desalento e de dúvida perante a vida que só mesmo um bom livro nos pode deles salvar....).
Há muito tempo que não sentia esta dependência por um livro, aquela que não nos deixa sossegar enquanto não o acabamos.
Uma história melodramática e com um fim que não me agradara, enquanto não investiguei algo da obra pela net - descobrindo que este era um romance autobiográfico.
Mas admito que no início senti que estava a ler daqueles romances best-sellers sobre meninas de burka, acabadas de casar com um velho feio e de penetrar no seu harém, que têm uma vida infeliz algures no médio oriente. Ainda que o livro não tenha nada a ver com isso. Foi só uma sensação. E as sensações são coisas maravilhosas para a literatura e para a poesia e para a construção de metáforas e de uma sempre fresca sensibilidade - mas podem deixar-nos a léguas da realidade.
É um romance profundo, incrivelmente feminino (aliás, acho que o Pramoedya era um feminista!), com as inevitáveis mensagens ideológicas como pano de fundo (nacionalismo indonésio; feminismo; vida do campo - pura e honesta - vs vida da cidade - decadente e alienatória; discrepância social e económica; almas servis dos pobres que só pensam em ter dinheiro para comer e não encontram inteligência para nada mais; a cultura fortíssima de hierarquias que reina em Java, etc, etc). A dada altura - e foi a melhor! - senti-me como em Kafka ou como em Selma Lagerlof - ai, esta adição deliciosa de surrealismo, improbabilidade, perversidade e lirismo = a presença inquietante de personagens e, claro, depois = o nascimento de situações que ao mesmo tempo que belas, porque oníricas, nos provocam um certo mal-estar e indiciam a malícia do mundo e das pessoas... como a figura do bardo com a sua pandeireta (que me lembrou o pobre bardo do Astérix que acabava sempre amordaçado à árvore enquanto a comunidade se banqueteava!), ou do ancião da vila... E também os momentos de incrível ternura cheia de humor, como a do diálogo entre a rapariga de Java e o cocheiro, me lembraram aqueles dois autores. E também neste romance as personagens não têm nomes, mas "títulos", o que nos faz falar delas como numa história (o que é, de facto...): "conheci uma rapariga... e havia um velho que... e o cocheiro...".
Este anonimato faz-me sentir confortável enquanto leitora, inquieta-me ao mesmo tempo e faz-me sentir mais nova, também.
Por isso, quando eu for escritora, acho que não vou dar nomes às minhas personagens. Há pintores que fazem o mesmo - e eu gosto deles.
E agora vou dormir, sem fonética, por favor.