dando voltas no estádio

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Hoje passaram-me várias coisas pela cabeça.
Fui correr, ao fim da tarde, num estádio meio abandonado que fica a poucos passos da minha casa. De vez em quando vou para lá, principalmente quando já caiu a noite. Nunca acendem os holofotes e tu respiras a escuridão pesada de uma noite tropical.
Primeiro caminho, durante uns 20 minutos, depois corro. Às vezes assusto gatos, morcegos ou ratos que devem morar por ali, não sei. No início, eu também me assustava, mas comecei a perceber que eu os assustava muito mais a eles e que tinha uma notória e confortável vantagem sobre os bichos. Acho que não me vão atacar e pode ser que com o tempo se habituem à minha presença veloz entre eles.
Relaxa-me ir para ali e penso devagar sobre as coisas.
Melhor mesmo é quando corro e me ultrapasso a mim mesma e esqueço-me de que existo - e aquilo que corre ali é uma pedra fisgada no ar com muita força. Era o que me acontecia quando nadava. Depois de um esforço horrendo, passados 50 minutos de sofrimento, entrava numa espécie de transe e parecia que não eram os meus braços quem empurrava as águas e o cloro ardente...
Pensava sobre isso, depois de ter voltado a mim, depois da correria, enquanto esticava os braços para a frente e para trás e batia com os calcanhares nas nádegas, - e sonhava. Sonhava que, um dia, os meus alunos viriam a sentir isso nas minhas aulas. Depois do esforço, da concentração e do estudo - que, um dia, o português patinaria na língua deles como saliva.
Tentei lembrar-me se alguma vez tinha sentido isto numa aula, esta sensação de ausência de mim, de extremo conforto, de liberdade e de relaxe. Não. Sempre fui uma stressada nas aulas. Cada vez que queria falar o coração começava a bater-me com tanta força que pensava que me ia romper o peito e saltar e voar como um passarinho doméstico que levou um tiro, partindo os vidros das janelas da sala de aula. A maior parte das vezes não falava. Nunca fui muito participativa nas aulas, apesar de ter coisas para dizer...
E agora estou a pensar numa receita - para que os alunos possam sentir, aprendendo e falando uma língua estrangeira, aquilo que sentimos quando fazemos desporto e nos esquecemos de que estamos cansados e a fazer esforço e de repente já nem contamos as voltas que damos e já só vamos em frente e até parece que podíamos continuar horas e horas e horas assim...
Hoje foi a primeira vez que isto me aconteceu a correr. Comecei há duas semanas e tem sido sempre uma sofredeira dos diabos. Mas hoje aconteceu o milagre!
No fundo, é disto que o Budismo fala quando fala na renúncia do ego. Olha só o que conseguimos fazer quando nos esquecemos de nós próprios e das tretinhas dos nossos problemas de meia tigela... No entanto, só se chega a um estado desses com disciplina, persistência e esforço.
O desporto é muito importante! Devia ser disciplina obrigatória não só no ensino secundário, mas ainda na universidade!
Entretanto, pensei noutras coisas. Pensei que quando comecei a pensar, espantada comigo mesma, a tentar contar as voltas que já teria dado e achando que já eram mais do que o habitual com certeza - senti-me repentinamente exausta, à procura do traço branco, marcado a giz sobre a terra batida da pista, que marcaria o fim.
E depois pensei que se não houvesse traço branco e não me lembrasse que havia um fim, continuaria e não me sentiria tão exausta. E, claro, vieram-me à mente as mais variadas e banais experiências já vividas: quase fazer xixi nas cuecas quando estava mesmo a chegar à casa-de-banho; desistir, sem fôlego, quando começava a vislumbrar a parede da pista na piscina, já na última volta do sprint; esperar horas por uma consulta no dentista e ficar impaciente e dirigir-me à saída e dizerem-me que vou ser atendida já a seguir e eu ir embora; sei lá - vocês poderão dar-me outros exemplos, vossos, porque todos nós sentimos o mesmo. Perto do fim, perdemos as forças e queremos quase desistir, depois de horas, ou meses ou mesmo anos de espera, esforço ou persistência.
Por isso é que as pessoas gostam de ver túneis de luz quando morrem, ou gostam da ideia de os ver - pronto. Se vissem qualquer coisa como uma meta, uma bandeirinha, um traço a giz no chão - ainda que luminosos, como o mítico túnel, o coração começava-lhes a bater demasiado depressa porque sentiam que estavam a chegar ao fim de uma coisa que nem sabiam bem o que tinha sido e que a caminhada tinha sido tão longa e que estavam tão cansados e com vontade de ir à casa-de-banho e "onde é que há uma casa-de-banho?", etc. Mas se vêem um túnel... ah... isso é outra coisa: há uma continuidade que não os deixa parar. Move-os a curiosidade? Move-os o esquecimento, talvez.
E se nós paramos, coçamos a cabeça e ficamos deprimidos, muito cansados, e sentamo-nos numa rocha a pensar como o outro do Rodin que sempre achei um bocado ridículo.
Então pensei ainda uma outra vez! Pensei que quando eu for escritora, os meus livros nunca hão-de ter um fim, porque eu não quero que os meus leitores se sintam cansados e desencorajados, quero-os sempre super-humanos!