animais, apesar de tudo, ainda nossos amigos
Amanhã a Filipa faz anos. Amanhã é domingo. Amanhã posso escolher entre deitar-me no sofá a ler um livro e cansar-me com coisas inventadas. Amanhã posso fazer bastante coisa.
Não me vejo assim tão diferente do que era há oito anos atrás. Será sinal de jovialidade ou de atraso mental? Os mesmos olhos abertos para o nada asfixiante e eternamente perscrutador. As mesmas pequenas insónias (é verdade que há oito anos eram maiores). A mesma média-luz na sala, no quarto, nos restaurantes que escolho para jantar. O mesmo álcool. A mesma ansiedade pela perfeição. A mesma procura absurda. O mesmo encanto fechado, calado, pelos detalhes das ruas e pelos animais.
E esta última leva-me a outra história. Ainda agora acontece-me chorar convulsivamente pelos animais.
Uma noite fui jantar com a Filipa a um Chinês perto de Azeitão. No regresso, passámos por um circo ambulante decrépito. Pedi-lhe para parar o carro, tinha entrevisto um urso e queria vê-lo de mais perto. Aproximámo-nos e ele lá estava, enjaulado, enorme num mundo demasiado pequeno para ele, cheio de instintos e de aptidões que não podiam respirar naquela jaula. Ele bamboleava, ora se apoiava numa pata ora na outra, e sorria numa quase imaterial baba que escorria da sua boca. Olhava-me fixamente, porque eu o olhava com os olhos de alguém que tentava. Senti que me falava, que me pedia ajuda, e senti que ele tentava libertar-se de um estado de alucinação. Comecei a gritar, a avançar pelo campo do circo, à procura de gente que me desse justificações sobre o estado daquele pobre urso. Até que, entre a noite e o silêncio, cinco dedos frios da minha amiga Filipa disseram sobre o meu ombro tenso "É melhor irmos. Aqui não há ninguém que vos oiça". E nós fomos. Mas levei o pequeno grande urso no meu coração.
Aqui, em Jacarta, vejo meninos de 5, 6, 7 anos a pedir esmola pela rua, acompanhados de pequenos e tristes macacos. Os macacos fazem espectáculos ridículos e decadentes de acrobacias mal ajeitadas (lembram-me sempre o pobre professor apaixonado no Anjo Azul do Sternberg), com o olhar mais carregado de tristeza e mais submisso ao mesmo tempo... Estes macacos, num recanto fotográfico de Jacarta, originaram mais um dos meus delírios. Este.