sem nós, o que seria deles?




Reli-o.
Lembrava-me de um certo incómodo, da primeira vez que o li. Não me lembrava bem porquê. Pensava que seria por versar a guerra. No entanto, lembrava-me também do espanto e da paixão. Depois de ler este livro, com o qual descobri este magnífico romancista que foi o Pierre Boulle, desatei a devorar o senhor. E, com ainda maior espanto, li, por exemplo, Le Planete des Singes, e outros - ainda mais belos a meu ver - como Pour amour de l'Art e Le Professeur Mortimer.
Incomoda-me lê-lo. E que mais se deve esperar de um bom romancista?
Mas, nesta segunda leitura da famosa ponte sobre o rio Kwai, mais conhecida pelo filme do que pelo autor, fiquei chocada.
E depois, admirada. E depois, grata.

Passa-se durante a Segunda Guerra Mundial. Estamos na Ásia. Colónias inglesas e holandesas foram ocupadas pelos japoneses. Militares ingleses, entre outros, são prisioneiros num campo de trabalho forçado liderado por um bruto coronel japonês. A missão: construir uma ponte sobre o rio Kwai, na fronteira entre a Birmânia (Mianmar) e a Tailândia, para que seja concluída, por linha ferroviária, a ligação entre Banguecoque e Rangoon (Yangon), de forma a que a armada japonesa chegue a Bengala, ocupando assim a Índia.

Porquê chocada? Por isto:
"'What fools they are, sir!', said Clipton looking closely at the Colonel. 'To think that, without us, they would have built their bridge in a swamp and it would have capsized under the weight of their trains loaded with troops and supllies!'
There was a strange glint in his eyes as he spoke, but the Colonel's face remained inscrutable.
'Yes, aren't they?' he solemnly replied. 'They're what i've always said they were: primitive people, as undeveloped as children, who've acquired a veneer of civilisation too soon. Underneath it all they're absolutely ignorant. They can't do a thing by themselves. Without us, they'd still be living in the age of sailing ships and wouldn't own a single aircraft. Just children... yet so pretentious as well. Think of it, a work of this importance! As far as i can make out, they're only just capable of making a footbridge out of a jungle creepers'"

E este é um pequeno exemplo do discurso racista que grassa pelo pequeno livro inteiro.

No fim, ficou-me a admiração. Primeiro, porque apesar de me coçar por causa dessa ideologia extremista que vislumbrava e que me inquietava, não conseguia deixar de admirar a mestria narrativa, o suspense, as minuciosas descrições, a envolvente análise psicológica. Depois, porque - fosse ou não a intenção do autor (e creio que sim; sendo ele o mesmo que escreveu uma obra como o Planeta dos Macacos, onde satiriza encantadoramente e em jeito de ficção científica a alta conta em que os humanos se têm) - derrotada e alegre ao mesmo tempo, cheguei ao fim com a presença divina da Ironia e com a sensação de que "a complexidade e o método ocidentais e anglo-saxónicos" (palavras do autor) são tão separados desta vida, o que quer que ela seja, são tão abstractos, tão sem escopo para além da sua própria auto-contemplação, que me dão uma imensa vontade de rir.

Obrigada, Pierre Boulle.